Carlos Calvet, 1964
há sangue a queimar ● entra depressa no quarto
sacode a estrela vizinha (ela brilha nos cortinados)
estreia-a na noite como quem solta as aranhas trepadeiras
põe-lhe a vermelhidão mortal com que inauguras os dias
poderás sorrir no flanco empoeirado das estações
a repetirem-se vezes sem conta no pestanejo rápido
junto aos livros libertados dos caprichos do calendário
cumprindo pena exilados, excluídos do carrossel sazonal
a mesa ferve madeira ● doa carbono
ressoa silhuetas libertinas, esquissos difusos
a lembrarem rostos que amealham faíscas
por um bocejar noctívago do líquen a pairar no hall
poderás identificar fantasmas e comer com eles
talvez até perscrutar vozes obscuras no mofo dos móveis
embarcar no torvelinho torrencial dalguma memória
a gazear no tecto agora picotado e permeável
a muralha nos intestinos ● a miríade vibrátil
espera algures qualquer coisa lá fora para amar
num trecho de mundo a beijar atrapalhadamente
para que reinventes passo a passo o perto em aperto
sem fechar definitivamente esse vórtice surpreendente
e salvaguardes o berço dos cometas; com sorte, talvez
aches lá fora quem de honesto conte frios os minutos
presos aos dedos – patronos do medo, abençoados na perda
pergunto-te: até quando jejuarei nas entrelinhas?
Porfírio Al Brandão [2007]